Seu João era um homem desses que levavam a vida como quem assina pontos: um movimento monótono no início do dia, indicando que o começava, e um outro no final, para deixar claro que o terminava. O resto do tempo era como um imenso arrastar-se entre esses dois momentos, preenchido com a burocracia dos empregos em repartições públicas. Não era à toa, já que a veia cômica da vida quase sempre insiste em manter-se pelos lados da ironia, que Seu João tirava o pão de cada dia trabalhando em um cartório, assinando linhas, carimbando papéis, abrindo firmas, catalogando arquivos, bebendo cafezinhos e fumando cigarros. E a tal ponto vivia Seu João entrosado com essa vida, que ele há muito tempo não conseguia demarcar um limite claro entre seus afazeres pessoais dos afazeres públicos, como se a burocracia do mundo dos arquivos tivesse se infiltrado no seu cotidiano, separando por ordem alfabética, cronológica, ou outra importância, cada um das ações de Seu João, numa sequência certa e sem nenhuma possibilidade de alteração, com pena de tomar uma ação judicial de algum órgão que não sabia muito bem qual era e quem representava.
Mas como toda repartição, a vida de Seu João também tirava suas férias e permitia que o sujeito mudasse sua rotina por alguns dias. Essas férias sempre aconteciam no carnaval, provavelmente para deixar com que outros seus joãos por aí fizessem o mesmo, aproveitando tudo num pacote que garantia um descanso muito maior a todos. Era só nesse período que Seu João podia inverter tudo o que era lei e brincar de ser alguma coisa que nunca poderia ser no dia-a-dia. Assim, a cada carnaval, Seu João deixava de ser ele mesmo e se transformava em pirata, bombeiro, zorro, palhaço, cavaleiro, centurião, padre, hippie, astronauta, soldado, marinheiro, zebra, carateca ou qualquer outra coisa que pensasse e conseguisse criar, e pulava os dias da maior festa do mundo junto com outras pessoas que eram ao mesmo tempo idênticas e completamente diferentes dele mesmo.
Essa história, que se repete e se repetiu e se repetirá inúmeras vezes em toda a parte onde existam carnavais, não mereceria ser contada, por já ser um clichê da marca mais vendida e comprada, se, por um acaso, Seu João não tivesse passado por um momento de pouca criatividade na hora de escolher sua próxima fantasia para o carnaval que já se aproximava. Pois se já tivesse certo do que iria se tornar em pouco tempo, não teria se deixado influenciar pelo que filme que viu de relance enquanto mudava de canais sem compromisso durante um dos seus momentos pré-progamados. O filme em questão contava a história de um cientista que criara um carro que voltava no tempo e era um clássico do pipocão cinematográfico, gênero adorado por muitos, Seu João aí no meio. Achou um tema interessante pra se fantasiar, e quando o carnaval começou, Seu João já era o cientista maluco que viajava pelo tempo, de jaleco e tudo.
Mas, se a pouca criatividade de Seu João foi o primeiro golpe da enxada que começava a nova trilha, é agora que tudo começa a realmente caminhar pelo caminho recém-inaugurado. Pois foi quando Seu João entrou no seu carro para dirigir até o ponto onde costumava brincar o carnaval todos os anos, que teve a idéia maluca, provavelmente porque era agora um cientista louco. Parou um tempo com a testa franzida, como se considerasse o que estava para fazer, e ficou alguns instantes pensando. Quando por fim tomou sua decisão, marcou numa tela imaginária uma data, encostou-se no banco, colocou o sinto de segurança e voltou no tempo para brincar um antigo carnaval.
Desde então Seu João passa a vida toda voltando no tempo para brincar antigos carnavais. Sempre que acaba um, ele marca na sua tela imaginária uma data e começa tudo novamente. Ele nunca vai para o futuro, pois tem medo de que chegue numa época em que o carnaval não exista mais. Por isso prefere a segurança do passado, onde pode ter certeza de que sempre poderá ser um palhaço, um detetive, um zorro ou um cientista maluco o tempo que puder.
Muitas pessoas depois de tomarem conhecimento dessa história extraordinária se perguntam por que diabos o Seu João, se teve a capacidade de voltar no tempo, simplesmente não modificava sua vida de forma a torná-la tão agradável quanto ele quisesse. O que essas pessoas não conseguem entender é que o que o Seu João fez foi menos compreender como funciona a realidade do que aceitar que o que se vive é a ilusão.
NOTA: Esse texto não ficou muito bom, mas eu meio que me senti na obrigação de escrever alguma coisa que tivesse a ver com o carnaval. Ele é meio que uma prova, já que eu o idealizei e escrevi muito rapidamente, de que escrever é muito mais do que simplesmente colocar palavras num papel. É também uma prova de que, mesmo detestando essa festa, é meio difícil fugir da epidemia carnavalesca. XD
2 comentários:
Foi o primeiro verso que criei, deste poema.
Obrigado pelo comentário!
^^
Ilusão e realidade... nesses tempos tão confusos, a linha entre estas duas é cada vez mais tênue, isso se existe tal linha.
E, Seu João faz muito bem em não tentar mudar o passado porque, como a própria série dos filmes do texto diz, as consequencias de tal mudança são imprevisíveis.
Gostei muito do texto! Desculpe não aparecer tanto quanto gostaria. Tentarei vir mais vezes a seu blog!
E antes que eu me esqueça, teria como você ler esse texto? http://lucasconrado.blogspot.com/2009/08/esperando-avioes.html
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