segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Anonymous, V, Zappa

Quem frequenta a internet hoje em dia (as redes sociais) já deve ter ouvido falar do Anonymous e de um dos seus símbolos adotados mais famosos: a máscara utilizada pelo protagonista de V de Vingança. Mas acho que pouca gente, infelizmente, conhece Frank Zappa, e nem faz ideia da relação entre o controvertido músico e o grupo de hackers e seu símbolo. E sim, ela vai além da simples aparência.

A primeira relação entre os três elementos é a luta pela liberdade. Se a liberdade buscada por V pertence a uma instância muito mais política (num sentido mais restrito da palavra), e a do Anonymous se refere mais à distribuição livre do conhecimento, poderíamos dizer que Zappa estava no meio dessas duas esferas, revelando que na verdade uma não está tão separada da outra como às vezes parece se pensar. Defensor da liberdade individual e da diminuição do poder do Estado sobre as pessoas (a ponto de se considerar um “conservador” inserido na conjuntura política de seu país), era também contra qualquer controle do pensamento e da expressão, como pode ser visto através do seu discurso no Senado norte-americano, a respeito do projeto de censura de conteúdo musical desenvolvido pela Parents Music Resource Center:

“A proposta da PMRC é uma peça doentemente concebida que falha ao entregar qualquer benefício real às crianças, infringe as liberdades civis de quem não é criança, e promete manter a corte ocupada por anos com problemas de interpretação e constrangedores inerentes ao desenho da proposta. É meu entendimento que, na lei, as publicações da Primeira Emenda são decididas com preferência pela alternativa menos restritiva. Neste contexto, as demandas da PMRC são equivalentes a tratar caspa com decapitação... O estabelecimento de um sistema de classificação, voluntário ou de outro modo, abre a porta para uma parada interminável de programas de controle de qualidade moral baseados em coisas que certos cristãos não gostam. O que acontecerá se o próximo monte de esposas de Washington demandar um "J" grande e amarelo em todos os materiais escritos e apresentados por judeus, para salvar crianças desamparadas da exposição à oculta doutrina sionista?”

Nota-se claramente a associação ao controle do pensamento com a opressão à liberdade do cidadão, e, mais, do que isso, à consequente perseguição a grupos minoritários que em algum momento poderiam ameaçar o establishment... ou apenas irritá-lo por contrariar sua ideologia (não à toa Zappa era um feroz combatente da religião organizada). “Who are de Brain Police?”, perguntava Zappa no primeiro álbum conceitual da história do rock, e também o primeiro disco de sua carreira, chamando a atenção para a ação coerciva do Estado contra o pensamento.

A assunção de Zappa como “conservador”, contudo, não o fazia nem de longe um reacionário alinhado com a direita conservadora norte-americana. Além de ser um contestador de quase tudo o que se mantinha no poder, a inclinação política de Zappa parecia estar mais próxima ao anarquismo do que a qualquer outra coisa, o que se reflete na sua própria obra como músico, na sua dimensão formal extremamente experimental e revolucionária, e tecendo diversas críticas suas letras ácidas e bem humoradas, sem, contudo, se preocupar em oferecer soluções (talvez consciente da própria parcialidade e falibilidade dessas soluções). Tal anarquismo zappiano parece estar bem próximo das ideias carregadas por V e pelo Anonymous. A ideia básica aqui me parece ser a de que cada um, agindo individualmente mas com um objetivo geral compartilhado, faz a força necessária para a mudança que se pretende. Uma mudança em direção a um mundo mais justo, é preciso lembrar, embora não se pareça saber exatamente quais seriam as feições de tal mundo. Essa “individualidade conjunta” parece ser metaforizada pela distribuição feita por V de máscaras idênticas a sua para a população londrina como uma convocação à ação (melhor confessar logo que, infelizmente, nunca li o graphic novel e só vi o filme de V de Vingança): não importa tanto os motivos individuais que movem cada um, desde que o movimento aconteça, e a máscara é menos uma forma de proteger a identidade do que de se associar a um mesmo grupo que compartilha o mesmo objetivo. No caso do Anonymous, isso é refletivo não só no nome e no símbolo compartilhado com a obra de Alan Moore, mas na própria estrutura do movimento, organizado não em torno de um grupo, mas em torno de um princípio básico, e formado por diversas ações mais ou menos individuais que seguem esse princípio.

É interessante notar como, apesar de toda a semelhança física entre as imagens de Zappa e de V (e do Anonymous), o primeiro está tão distante do(s) segundo(s) no que diz respeito à identidade. Zappa está longe de ser um anônimo (como qualquer bom rockstar), e suas ações concretas sempre tiveram consequências diretas sobre ele, ao contrário do que acontece com o Anonymous, cujos membros estão (parcialmente) protegidos pelas máscaras que utilizam. Não é minha intenção aqui julgar um tipo de ação como melhor do que a outra, mesmo porque tenho noção das diferentes conjunturas que separam as ações de Zappa e do grupo. Contudo, gostaria de destacar que isso tornou a imagem de Zappa num ícone, muito semelhantemente ao que aconteceu com V, embora em escala, infelizmente, bem reduzida.

Digo infelizmente porque acredito ser interessante retomar algumas das ideias inovadoras de Zappa, e talvez tentar articulá-las com o contexto atual, tendo consciência que muito da luta antiga do músico toma proporções enormes atualmente. Só como exemplo, cito a ideia dele de pensar na transferência digital de músicas como uma forma de facilitar e baratear o acesso a material musical de qualidade ao mesmo tempo em que garantiria o direito do artista de receber por seu trabalho, evitando o controle das grandes gravadoras que prejudicam o público e o artista. Pouca coisa me soa mais atual e pertinente do que isso no que diz respeito à indústria fonográfica de hoje em dia. Talvez se as gravadoras, os músicos e os próprios consumidores tivessem parado para pensar nisso quando Zappa falou, tivéssemos uma situação muito mais tranquila agora, e não precisaríamos correr o risco de perder a internet.

Admiro o trabalho do Anonymous, assim como gostei bastante do personagem V, e fico feliz com a popularidade dessas duas figuras, embora elas tenham constantemente e infelizmente caído na armadilha hype. Mas, como gosto pessoal, admiro muito mais a figura do músico de Baltimore, por suas grandes ideias, mas sobretudo pela sua arte. Afinal, nas palavras do próprio mestre:

“Information is not knowledge. Knowledge is not wisdom. Wisdom is not truth. Truth is not beauty. Beauty is not love. Love is not music. Music is the best”

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