quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Paulo Coelho é o intelectual mais importante deste país


Sei que já faz tempo que passou o bafáfá sobre o autocoroamento de P. Coelho, mas me parece importante atestar a veracidade da afirmação ou da cerimônia. P. Coelho é, de fato, o intelectual mais importante do Brasil. E quem, além dele, ocuparia tal lugar? FHC? Antonio Candido? Olavo de Carvalho? Marilena Chauí? Luiz Pondé? Se encararmos o termo "importante" em termos de "alcance", não há competição. Difícil imaginar alguém lendo FHC no metrô de Recife, por exemplo (sei que tal coisa existe, mas ainda assim é difícil de imaginar). Já P. Coelho... talvez, nesse sentido, Augusto Cury faça concorrência. Ou padre Marcelo. Mas P. Coelho é lido na gringa. Muito lido. Então, não há mesmo quem possa assumir esse trono de grande intelectual brasileiro além dele.

Claro, há quem diga que P. Coelho não é intelectual de maneira alguma. De certa forma, isso é correto. Mas também é errado. Quando se pensa num intelectual, geralmente se imagina o homem sábio, sentado em meio a uma infinitude de livros de onde retira os conhecimentos necessários para ofertar respostas profundas aos grandes problemas de seu tempo. Curiosamente, P. Coelho ao mesmo se encaixa e não se encaixa na descrição acima. Mas não é nela que me baseio para fazer a afirmação do título. Penso, na verdade, num conceito de intelectual muito mais abrangente: o intelectual orgânico gramsciano. Este seria aquele que nasceria organicamente do meio do qual faria parte e seria representante. E ofereceria suas próprias respostas para seu próprio meio.

P. Coelho é um intelectual orgânico. Isso me parece claro. Como brasileiro, ele acabou sendo o maior intelectual do país. Fazer o quê. Resta, na verdade, saber de onde P. Coelho nasceu organicamente. Do mercado? De um misticismo new age? De um país onde as pessoas queriam ouvir, como ele mesmo diz, coisas complexas de forma simples? De um mundo onde as pessoas queriam ouvir coisas complexas de forma simples? (Lembro aqui a conferência bolaniana "Los Mitos de Cthulhu" e da resenha de Idelber Avelar sobre o novo livro de P. Coelho) De tudo isso junto e mais alguma coisa insondável?

Mais do que discutir sobre a polêmica boba das declarações marqueteiras/acertadas de P. Coelho, o interessante é discutir o local de onde este organicamente surgiu. Pois me parece que isso tem muito mais a dizer sobre o mundo em que vivemos do que a polêmica em si.


quarta-feira, 27 de junho de 2012

Pedro de Lara




Era um dia chuvoso de verão em São Paulo, há alguns anos atrás, quando eu passava as férias com meu pai, e nós andávamos de carro pelas ruas cinza-amarronzadas da cidade. De repente, quando o carro dobrava uma esquina torta qualquer (das inúmeras que existem em São Paulo), vimos o Pedro de Lara. Mas era o Pedro de Lara mesmo: vestido de terno, com o cabelo preso num rabo de cavalo e a expressão de mau-humor inconfundível. A única diferença entre o Pedro de Lara que vi em São Paulo e o Pedro de Lara que via na TV era que o primeiro tinha um pedaço de papel na cabeça para se proteger da chuva. (também notei a ausência da musiquinha: “Pedro de Lara-ra, lá lá lá lá, lá lá...”).

Meu pai, ao ver Pedro de Lara na rua, colocou a cabeça pra cora do carro enquanto fazia a curva da esquina e gritou: PEDRO, FI DUMA ÉGUA!, saudação que foi respondida pelo Pedro com um efusivo cruzamento ofensivo de braços, ou seja, com uma clássica banana.

Até hoje eu penso que esse evento não significa nada, embora eu tenha a sensação de que ele significa tudo.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Hoje, para o horror dos comunistas mais ferrenhos, eu comprei um caderno da Coca-Cola, o que me fez pensar no que esses mesmos comunistas pensariam se soubessem que eu tenho um broche do Che Guevara ornamentando uma boina. Aqueles mais tolerantes, ou com melhor senso de humor, talvez achassem que estou desonrando um dos elementos de seu traje característico (pensei aqui em dizer que seria um “ultraje a rigor”, mas a ridicularidade excessiva da piada me fez deixa-la de lado – ops!). A maioria, contudo, tenho certeza de que me chamaria de poser. Tudo bem. Não posso negar que, à falta de um duplipensar aprimorado, tenho consciência das contradições que carrego nas costas como cidadão ocidental. Mas, também pelo meu próprio bom humor, confesso que acho bastante engraçado quem se esquece que também faz parte desse nosso ocidente pós-moderno e acredita que deixar de tomar Coca-Cola é o primeiro – e essencial – passo para se orquestrar – como maestroarranjador que é – a – oh! – revolução.

imagem que é um verdadeiro terror epistemológico para alguns mais sensíveis

Mas, como diria nosso querido Adorno, é tudo culpa do controle remoto. Ou algo assim. Porque com a popularização (e alguns diriam orkutização) de tudo, tudo virou um emaranhado de tudo. Marxismo atualmente (ou neo ou pós marxismo), quando é bem confundido, é confundido com comunismo; mas de maneira geral nego acha que marxismo é não comer no Mcdonalds (nosso refúgio contra o niilismo), não tomar Coca-Cola (que dirá comprar um caderno!) e andar de havaianas (que tão caras pra caramba).

sacanagem, Adorno!

Não que eu seja um daqueles que adoram brandir maldita inclusão digital ou algo assim, mas pra tudo tem limite. É preciso não só controlar a popularização do banal como também impedir a banalização das coisas mais complexas usando como pretexto a popularização. Como por exemplo, ver o Pedro Bial, vestindo o terninho de poeta, falar de feminismo num discurso de paredão no Big Brother.

nosso poeta engajado e intelectual orgânico

Aliás, nem é preciso o Bial bancar o poeta engajado (nos termos sartrianos) pra gente ver a banalização do feminismo, tanto entre seus opositores como entre seus defensores. Ou seus e suAs defensores e defensorAs, oração essa que é um belo exemplo do feminismo banalizado. Claro que é importante chamar a atenção para a hierarquização dos gêneros veiculada pela própria linguagem; mas fazer disso um credo e jihad ao ponto de ter ataques histéricos toda vez que alguém engloba todo mundo sob o gênero masculino é bobagem.

Da mesma forma, comemorar “por comemorar” o dia internacional da mulher é banalizar a data. Essa não é aquele dia pra dar os parabéns para todas as mulheres da sua família por elas terem tido a imensa felicidade de nascerem com dois cromossomos x. Essa é a data para lembrar de como as mulheres foram – e, absurdamente, ainda são – oprimidas por esses machismo e patriarcalismo babacas que insistem em andar de cabeça erguida quando deveriam ter sido varridos pra lata do lixo há muito tempo. E como apenas lembrar do passado quase nunca é suficiente pra resolver os problemas do presente, é o dia pra mostrar que a inferiorização da mulher ainda existe , e com muita força, e que isso precisa acabar o mais rápido possível. E se for possível, resgatando também um dos grandes propósitos do feminismo enquanto paradigma de pensamento, lembrar que não só as mulheres são vítimas de opressão, mas também os negros, gays, pobres, deficientes, etc., etc., etc., e que nada disso se justifica porque somos todos iguais.

é preciso sempre lembrar

Comemorar “por comemorar” o dia internacional da mulher me parece algo tão banal quanto passeata do orgulho hetero e coisas assim. É preciso sempre lembrar das razões para a existência de dias como esse para não correr o risco de que essas razões se dissolvam na euforia da comemoração em si. E para que por fim possamos viver numa sociedade mais justa e que já não necessite mais da existência de um “dia internacional da mulher”.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Ensaios sobre a democracia


Há quem não goste de José Saramago pelo fato dele ter sido comunista. Ocupam este lugar geralmente pessoas que se consideram de direita que não leram a obra do escritor português. Felizmente, há aqueles que, se assumam como direitistas, tiveram a boa vontade de ler o que Saramago escreveu, e, embora continuem não gostando do escritor como pessoa, tiveram de se render à qualidade de sua obra. Tenho fé de que esses não sejam poucos, embora saiba que não são muitos.

Aqueles que se consideram de direita e que não leram a obra de Saramago costumam criticá-la por ser “um reles veículo da ideologia esquerdopata”, ou algo no estilo, e adoram enxergar nos Ensaios (sobre a cegueira e sobre a lucidez) do autor um ataque stalinista à democracia duramente conquistada na base da luta, do sangue, da coragem e do capital. É preciso assumir que tal estratégia, embora seja um belo clichê, ainda mantém uma força invejável; poucas pessoas, sejam elas de direita, esquerda, centro ou qualquer coisa que patine entre essas categorias dificilmente demarcadas, se atrevem a defender que a democracia deva ser extinta, e sempre que ela sofre um ataque a maioria corre logo para defendê-la, de um jeito ou de outro.

Se Saramago odeia da democracia e quer vê-la na lata do lixo dos sistemas políticos, quem se atreveria a defendê-lo? Bem, qualquer um com um mínimo de senso crítico e que tenha gastado um pouco do seu precioso tempo para ler o que ele escreveu. Primeiramente, é preciso dizer que não existe nada nesse mundo que não deva ser questionado, muito menos a democracia; questionar é sempre o primeiro passo para o avanço, e se o conservadorismo radical tomasse conta de todas as dimensões da vida humana ainda viveríamos em cavernas (ou nem isso). Em segundo lugar, o questionamento da democracia nos Ensaios está longe de promover qualquer tipo de ditadura, uma vez que um dos principais ataques de Saramago em seus livros se dirige às ações opressivas do Estado. Por fim, o que percebemos no Ensaio sobre a lucidez é que as pessoas podem muito bem governar a si mesmas sem a interferência do Estado, de uma maneira pacífica em que cada um é responsável por agir de modo a manter a melhor convivência possível com os outros. Há, no segundo Ensaio saramaguiano uma verdadeira demo cracia, ou seja, uma forma de organização social na qual o poder reside diretamente sobre o povo.

Fica claro, então, que a crítica de Saramago não é à Democracia, mas sim a um tipo falso de democracia, no qual o núcleo que detém o verdadeiro poder é formado por umas poucas pessoas que de maneira geral se colocam contra o povo em favor de seus interesses próprios, bem como à falta de capacidade das pessoas de conseguirem compreender o tipo de democracia no qual que vivem. Nesse sentido, Ensaio sobre a cegueira não é apenas uma fábula sobre a animalidade que o homem pode chegar quando privado de suas necessidades mais básicas, mas também um aviso sobre até onde a falta de visão (crítica) pode nos levar.

Esse tipo falso de democracia denunciado por Saramago está ganhando um destaque nunca antes recebido, principalmente devido às inúmeras novas denúncias feitas através do compartilhamento de informação proporcionado pela interação nas redes sociais e pelo crescimento da imprensa independente, ambos frutos da popularização da internet. Somente uma imprensa livre do “patrocínio” das grandes empresas é capaz de se esquivar e alertar sobre o lobby que essas mesmas empresas exercem sobre as decisões do poder público, como recentemente aconteceu com a “eleição” que colocou tecnocratas no poder da Grécia e da Itália, jogando por terra um dos princípios básicos da democracia, aquele que diz que o povo é quem deve escolher seus governantes.

Por outro lado, a interação fomentada por redes sociais como o Facebook não só foi importante no combate às ditaduras mais visíveis, como aconteceu nos movimentos da Primavera Árabe, como também na organização de protestos contra a falsa democracia, o que ficou evidente pela organização de diversos “occupy” ao redor do mundo, sendo o mais famoso deles o Occupy Wall Street. Esse, aliás, foi responsável por tirar a máscara do país que mais se orgulha de sua democracia e que adora exportá-la (à força) no mundo, os Estados Unidos. Sob o lema “We are the 99%”, referindo-se à grande maioria das pessoas que vivem nos Estados Unidos, os protestos questionaram as leis injustas que favorecem os 1% da população mais rica do país em detrimento da grande maioria pertencente às classes média e pobre. Que tipo de democracia é essa que governa apenas para um por cento da população de um país?

No Ensaio sobre a cegueira a população que vai gradativamente ficando cega é trancafiada para evitar que a epidemia se espalhe. Contudo, ao invés de serem tratadas da doença, as pessoas são abandonadas à própria sorte e submetidas a situações degradantes devido à falta de qualquer tipo de assistência. O que acontece é justamente o contrário: com a desculpa de evitar a propagação da epidemia os cegos são duramente repreendidos pelas forças policiais e militares, que a princípio deveriam protegê-los e auxiliá-los. Da mesma forma, vimos cenas de violência abusiva contra os manifestantes do Occupy Wall Street. Mas não é preciso ir tão longe para encontrar exemplos. Aqui no Brasil recentemente vimos a repreensão bruta e sem motivos dos estudantes que organizaram uma manifestação pacífica contra o aumento das passagens de ônibus de Recife, ao mesmo tempo em que acontecia uma cruel retirada de famílias há muitos anos instaladas na área que forma a comunidade do Pinheirinho, em São Paulo.

Essas duas ondas de violência e injustiça foram promovidas por partidos tanto de esquerda quanto de direita, ou talvez de centro, já que, como dissemos, esse tipo de delimitação parece cada vez mais difícil ou mesmo inútil de ser feita. Afinal, o motivo para tal violência é o mesmo: a repreensão do povo em favor de pequenos grupos com um forte poder de influência. Dizer-se de direita ou esquerda hoje em dia parece ser apenas uma forma de conquistar votos de determinada parcela da sociedade que se identifica com tais etiquetas; na prática, a diferença é determinada apenas pelos interesses daqueles que ajudaram financeiramente os políticos a se colocarem no poder.

Tal falsa assunção ideológica por parte dos partidos da falsa democracia é também alertada por Saramago em Ensaio sobre a lucidez. Tudo começa com a onda de votos em branco, que impede não só o partido da direita, como também do centro e da esquerda de assumirem o poder por falta de votos suficientes. Mais tarde descobrimos que a onda de votos brancos acontece no mesmo país em que anteriormente havia ocorrido a epidemia da cegueira. Foi preciso, assim, que todos tivessem ficados cegos e vivo a falência do Estado junto com a decorrente barbárie para tomarem consciência de que pouco importava em quem votar; e que, portanto, não se quer mais ninguém no poder para que os mesmos erros sejam cometidos novamente. Vencida a cegueira, vem a lucidez.

A organização em torno de um direito do povo que supera as simples ideologias políticas é notada pela manifestação em torno da defesa da liberdade da internet e no combate aos projetos de lei norte-americanos conhecidos como PIPA e SOPA. Independentemente da assunção das pessoas como “de esquerda”, “de direita”, “de centro”, etc., o que se nota é a consciência de que o direito de muitos não pode ser colocado de lado em favor do desejo de poucos. Enquanto as grandes empresas acusam o compartilhamento de arquivos entre pessoas de pirataria, o mesmo não acontece com as pessoas que estão compartilhando, que acreditam ser esse um direito seu; dessa forma, houve uma revolta geral quando os usuários da internet perceberam que os interesses e o entendimento da maioria no que diz respeito ao compartilhamento de arquivos está sendo simplesmente ignorado em favor do lucro de poucos. E que isso, também, não pode ser chamado de democracia.

A internet trouxe uma possibilidade de interação e articulação entre as pessoas que permitiu descortinar a falsa democracia em que vivemos; a reação dessa falsa democracia, como boa ditadura que ela na verdade é, foi tentar minar a potencialidade da internet, ao mesmo tempo em que serve aos interesses dos pequenos núcleos que continuam controlando o mundo. Contudo, como Saramago provavelmente desejava que ocorresse, talvez com uma pequena ajuda de seus dois Ensaios, é possível que estejamos finalmente vencendo a cegueira. Resta saber se seremos capazes de alcançar a lucidez e finalmente deixar para trás essa democracia de mentira

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Anonymous, V, Zappa

Quem frequenta a internet hoje em dia (as redes sociais) já deve ter ouvido falar do Anonymous e de um dos seus símbolos adotados mais famosos: a máscara utilizada pelo protagonista de V de Vingança. Mas acho que pouca gente, infelizmente, conhece Frank Zappa, e nem faz ideia da relação entre o controvertido músico e o grupo de hackers e seu símbolo. E sim, ela vai além da simples aparência.

A primeira relação entre os três elementos é a luta pela liberdade. Se a liberdade buscada por V pertence a uma instância muito mais política (num sentido mais restrito da palavra), e a do Anonymous se refere mais à distribuição livre do conhecimento, poderíamos dizer que Zappa estava no meio dessas duas esferas, revelando que na verdade uma não está tão separada da outra como às vezes parece se pensar. Defensor da liberdade individual e da diminuição do poder do Estado sobre as pessoas (a ponto de se considerar um “conservador” inserido na conjuntura política de seu país), era também contra qualquer controle do pensamento e da expressão, como pode ser visto através do seu discurso no Senado norte-americano, a respeito do projeto de censura de conteúdo musical desenvolvido pela Parents Music Resource Center:

“A proposta da PMRC é uma peça doentemente concebida que falha ao entregar qualquer benefício real às crianças, infringe as liberdades civis de quem não é criança, e promete manter a corte ocupada por anos com problemas de interpretação e constrangedores inerentes ao desenho da proposta. É meu entendimento que, na lei, as publicações da Primeira Emenda são decididas com preferência pela alternativa menos restritiva. Neste contexto, as demandas da PMRC são equivalentes a tratar caspa com decapitação... O estabelecimento de um sistema de classificação, voluntário ou de outro modo, abre a porta para uma parada interminável de programas de controle de qualidade moral baseados em coisas que certos cristãos não gostam. O que acontecerá se o próximo monte de esposas de Washington demandar um "J" grande e amarelo em todos os materiais escritos e apresentados por judeus, para salvar crianças desamparadas da exposição à oculta doutrina sionista?”

Nota-se claramente a associação ao controle do pensamento com a opressão à liberdade do cidadão, e, mais, do que isso, à consequente perseguição a grupos minoritários que em algum momento poderiam ameaçar o establishment... ou apenas irritá-lo por contrariar sua ideologia (não à toa Zappa era um feroz combatente da religião organizada). “Who are de Brain Police?”, perguntava Zappa no primeiro álbum conceitual da história do rock, e também o primeiro disco de sua carreira, chamando a atenção para a ação coerciva do Estado contra o pensamento.

A assunção de Zappa como “conservador”, contudo, não o fazia nem de longe um reacionário alinhado com a direita conservadora norte-americana. Além de ser um contestador de quase tudo o que se mantinha no poder, a inclinação política de Zappa parecia estar mais próxima ao anarquismo do que a qualquer outra coisa, o que se reflete na sua própria obra como músico, na sua dimensão formal extremamente experimental e revolucionária, e tecendo diversas críticas suas letras ácidas e bem humoradas, sem, contudo, se preocupar em oferecer soluções (talvez consciente da própria parcialidade e falibilidade dessas soluções). Tal anarquismo zappiano parece estar bem próximo das ideias carregadas por V e pelo Anonymous. A ideia básica aqui me parece ser a de que cada um, agindo individualmente mas com um objetivo geral compartilhado, faz a força necessária para a mudança que se pretende. Uma mudança em direção a um mundo mais justo, é preciso lembrar, embora não se pareça saber exatamente quais seriam as feições de tal mundo. Essa “individualidade conjunta” parece ser metaforizada pela distribuição feita por V de máscaras idênticas a sua para a população londrina como uma convocação à ação (melhor confessar logo que, infelizmente, nunca li o graphic novel e só vi o filme de V de Vingança): não importa tanto os motivos individuais que movem cada um, desde que o movimento aconteça, e a máscara é menos uma forma de proteger a identidade do que de se associar a um mesmo grupo que compartilha o mesmo objetivo. No caso do Anonymous, isso é refletivo não só no nome e no símbolo compartilhado com a obra de Alan Moore, mas na própria estrutura do movimento, organizado não em torno de um grupo, mas em torno de um princípio básico, e formado por diversas ações mais ou menos individuais que seguem esse princípio.

É interessante notar como, apesar de toda a semelhança física entre as imagens de Zappa e de V (e do Anonymous), o primeiro está tão distante do(s) segundo(s) no que diz respeito à identidade. Zappa está longe de ser um anônimo (como qualquer bom rockstar), e suas ações concretas sempre tiveram consequências diretas sobre ele, ao contrário do que acontece com o Anonymous, cujos membros estão (parcialmente) protegidos pelas máscaras que utilizam. Não é minha intenção aqui julgar um tipo de ação como melhor do que a outra, mesmo porque tenho noção das diferentes conjunturas que separam as ações de Zappa e do grupo. Contudo, gostaria de destacar que isso tornou a imagem de Zappa num ícone, muito semelhantemente ao que aconteceu com V, embora em escala, infelizmente, bem reduzida.

Digo infelizmente porque acredito ser interessante retomar algumas das ideias inovadoras de Zappa, e talvez tentar articulá-las com o contexto atual, tendo consciência que muito da luta antiga do músico toma proporções enormes atualmente. Só como exemplo, cito a ideia dele de pensar na transferência digital de músicas como uma forma de facilitar e baratear o acesso a material musical de qualidade ao mesmo tempo em que garantiria o direito do artista de receber por seu trabalho, evitando o controle das grandes gravadoras que prejudicam o público e o artista. Pouca coisa me soa mais atual e pertinente do que isso no que diz respeito à indústria fonográfica de hoje em dia. Talvez se as gravadoras, os músicos e os próprios consumidores tivessem parado para pensar nisso quando Zappa falou, tivéssemos uma situação muito mais tranquila agora, e não precisaríamos correr o risco de perder a internet.

Admiro o trabalho do Anonymous, assim como gostei bastante do personagem V, e fico feliz com a popularidade dessas duas figuras, embora elas tenham constantemente e infelizmente caído na armadilha hype. Mas, como gosto pessoal, admiro muito mais a figura do músico de Baltimore, por suas grandes ideias, mas sobretudo pela sua arte. Afinal, nas palavras do próprio mestre:

“Information is not knowledge. Knowledge is not wisdom. Wisdom is not truth. Truth is not beauty. Beauty is not love. Love is not music. Music is the best”

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Cavalinhos Gregos

O Central Scrutinizer estacionou legal. Escrever textos mais longos tem sido difícil, pois o tempo anda muito escasso. Por isso não tenho postado nada de novo. Aqui.

Meu atual projeto ativo é o Cavalinhos Gregos, um blog de minicontos fantásticos. Se alguém ainda aparece por aqui, peço que apareça por lá:

http://cavalinhosgregos.blogspot.com/

Um dia eu ainda toco o bonde. Um dia.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Divindade Espontânea

Imagine que você é Deus.

Imagine que você é onipotente, onisciente e onipresente, e que, apesar de seu feito de amor, é justo e ao mesmo tempo cruel, piedoso e temível, além de orgulhoso, excêntrico e de extremo bom gosto. Talvez você nem seja assim de verdade, porém essa será a imagem que terão de você.

Agora pense em um lugar qualquer, contanto que seja vivo: ou seja, que possua águas, plantas, rochas e bichos. Este será o lugar onde você poderá construir o seu mundo, e este mundo, enquanto permanecer assim, será perfeito em sua simples harmonia, e continuará perfeito até que você cometa seu primeiro erro.

Digamos, então, que seu primeiro erro será colocar um outro homem dentro desse mundo, alguém que seja à sua imagem e semelhança (não esqueça jamais: você não é Deus, apenas imagina que é). Talvez isso não represente um erro propriamente dito, pois, enquanto esse homem estiver sozinho, poderá viver dentro da simples harmonia que o seu mundo já possui; terá de adaptar-se, é verdade, e é bem possível que ele sofra um pouco; mas conseguirá, e assim a perfeição do seu mundo irá prosseguir conforme já havia sido planejada desde que nascera. Mas muito provavelmente você, não contente em ver que o seu homem está a viver tranqüilo dentro da simples harmonia do seu mundinho perfeito, vai sentir vontade (e esta talvez seja uma pequena travessura do seu lado mais infantil) de colocar lá dentro mais alguém como vocês, só pra ver no que vai dar e como já existe um homem, o senso comum obrigar-lhe-á a colocar uma mulher – que é tida, às vezes, como a contraparte do homem – dando assim um maior contraste à coisa toda, ao mesmo tempo em que, quem sabe ironicamente, mantém um equilíbrio necessário à perfeição do seu mundinho, o que, aliás, seria absolutamente impossível de ocorrer caso houvesse lá dois homens ou duas mulheres.

Este, em si, assim como no outro caso, não terá sido seu primeiro erro; porém a união dos dois sim. Pois imagine só que da união do homem e da mulher nascerá outro ser humano; e que de uma segunda união nascerá um segundo ser humano; e que isso se repetirá até que tenham nascido vários filhos dos seus primeiros semelhantes; e que esses filhos também irão unir-se entre si, criando assim uma terceira geração, e que da relação entre a terceira geração levará à quarta, que trará a quinta, que fará a sexta, que gerará a sétima e assim sucessivamente; e que logo o seu mundo perfeito está cheio de outros iguais à você, destruindo assim a simples harmonia que demorou tão pouco tempo, mas que foi sublime enquanto isso. Tente perceber qual será sua dor ao tomar conhecimento de seu primeiro erro e o que ele causou, mesmo assim ele será só o primeiro.

Imagine agora que talvez por raiva, ou por pena, ou até por um simples capricho seu, você ensinará coisas diferentes a pessoas diferentes. A alguns você dirá que se chama Deus e pregará a justiça, a outros dirá que seu nome é Vontade, e ensinará a força e a perseverança, em outro lugar você será conhecido por Universo e sua doutrina será o ócio; e para alguns, os mais terríveis, será chamado por Diabo e tudo o que for feito em seu nome será roubo, dor e assassinato. Pelo mesmo motivo que você se mostrou de formas diferentes a pessoas diferentes, colocará essas pessoas em lugares totalmente diversos um dos outros. A uns a terra será frutífera e bela; a outros, seca e dura; a alguns, gelada demais para se viver, e a outros, quente demais; terras montanhosas, planas, feias, estranhas, úmidas, pequenas, vastas, todos os tipos de lugares, e em cada um deles viverá um tipo de homem diferente.

Continue imaginando que todo esse seu capricho (ou justiça, ou piedade, ou qualquer nome que você queira dar, e que se aplique melhor à sua personalidade – ou não) não terminará por aí, lembre-se que você é Deus, e que é infinito, assim como os seus delírios. As doutrinas que você pregou a cada um desses grupos de pessoas, ou povos, revelar-se-ão doentias nas mãos e mentes desses seus filhos-irmãos assim que começarem a aparecer com maior força as características que você possui e que eles herdaram. Pois você, como homem, é pequeno, covarde e mesquinho; e assim serão as religiões que você ajudou a construir. Sua intolerância e preconceito criará escravidão e injustiça; sua cobiça e desprezo fará guerra; sua mesquinhez e preguiça gerará fome; sua falta de amor e altruísmo, morte.

Agora imagine, por fim, que você, como Deus, poderá prever a tudo isso e que por sua culpa e por conta de seus erros, seus filhos-irmãos viverão num mundo cheio de dor, aflição, injustiça e sofrimento.

Mas mesmo assim, se eles acharem que estão sem você, vão pensar que estão no inferno.