quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Cavalinhos Gregos

O Central Scrutinizer estacionou legal. Escrever textos mais longos tem sido difícil, pois o tempo anda muito escasso. Por isso não tenho postado nada de novo. Aqui.

Meu atual projeto ativo é o Cavalinhos Gregos, um blog de minicontos fantásticos. Se alguém ainda aparece por aqui, peço que apareça por lá:

http://cavalinhosgregos.blogspot.com/

Um dia eu ainda toco o bonde. Um dia.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Divindade Espontânea

Imagine que você é Deus.

Imagine que você é onipotente, onisciente e onipresente, e que, apesar de seu feito de amor, é justo e ao mesmo tempo cruel, piedoso e temível, além de orgulhoso, excêntrico e de extremo bom gosto. Talvez você nem seja assim de verdade, porém essa será a imagem que terão de você.

Agora pense em um lugar qualquer, contanto que seja vivo: ou seja, que possua águas, plantas, rochas e bichos. Este será o lugar onde você poderá construir o seu mundo, e este mundo, enquanto permanecer assim, será perfeito em sua simples harmonia, e continuará perfeito até que você cometa seu primeiro erro.

Digamos, então, que seu primeiro erro será colocar um outro homem dentro desse mundo, alguém que seja à sua imagem e semelhança (não esqueça jamais: você não é Deus, apenas imagina que é). Talvez isso não represente um erro propriamente dito, pois, enquanto esse homem estiver sozinho, poderá viver dentro da simples harmonia que o seu mundo já possui; terá de adaptar-se, é verdade, e é bem possível que ele sofra um pouco; mas conseguirá, e assim a perfeição do seu mundo irá prosseguir conforme já havia sido planejada desde que nascera. Mas muito provavelmente você, não contente em ver que o seu homem está a viver tranqüilo dentro da simples harmonia do seu mundinho perfeito, vai sentir vontade (e esta talvez seja uma pequena travessura do seu lado mais infantil) de colocar lá dentro mais alguém como vocês, só pra ver no que vai dar e como já existe um homem, o senso comum obrigar-lhe-á a colocar uma mulher – que é tida, às vezes, como a contraparte do homem – dando assim um maior contraste à coisa toda, ao mesmo tempo em que, quem sabe ironicamente, mantém um equilíbrio necessário à perfeição do seu mundinho, o que, aliás, seria absolutamente impossível de ocorrer caso houvesse lá dois homens ou duas mulheres.

Este, em si, assim como no outro caso, não terá sido seu primeiro erro; porém a união dos dois sim. Pois imagine só que da união do homem e da mulher nascerá outro ser humano; e que de uma segunda união nascerá um segundo ser humano; e que isso se repetirá até que tenham nascido vários filhos dos seus primeiros semelhantes; e que esses filhos também irão unir-se entre si, criando assim uma terceira geração, e que da relação entre a terceira geração levará à quarta, que trará a quinta, que fará a sexta, que gerará a sétima e assim sucessivamente; e que logo o seu mundo perfeito está cheio de outros iguais à você, destruindo assim a simples harmonia que demorou tão pouco tempo, mas que foi sublime enquanto isso. Tente perceber qual será sua dor ao tomar conhecimento de seu primeiro erro e o que ele causou, mesmo assim ele será só o primeiro.

Imagine agora que talvez por raiva, ou por pena, ou até por um simples capricho seu, você ensinará coisas diferentes a pessoas diferentes. A alguns você dirá que se chama Deus e pregará a justiça, a outros dirá que seu nome é Vontade, e ensinará a força e a perseverança, em outro lugar você será conhecido por Universo e sua doutrina será o ócio; e para alguns, os mais terríveis, será chamado por Diabo e tudo o que for feito em seu nome será roubo, dor e assassinato. Pelo mesmo motivo que você se mostrou de formas diferentes a pessoas diferentes, colocará essas pessoas em lugares totalmente diversos um dos outros. A uns a terra será frutífera e bela; a outros, seca e dura; a alguns, gelada demais para se viver, e a outros, quente demais; terras montanhosas, planas, feias, estranhas, úmidas, pequenas, vastas, todos os tipos de lugares, e em cada um deles viverá um tipo de homem diferente.

Continue imaginando que todo esse seu capricho (ou justiça, ou piedade, ou qualquer nome que você queira dar, e que se aplique melhor à sua personalidade – ou não) não terminará por aí, lembre-se que você é Deus, e que é infinito, assim como os seus delírios. As doutrinas que você pregou a cada um desses grupos de pessoas, ou povos, revelar-se-ão doentias nas mãos e mentes desses seus filhos-irmãos assim que começarem a aparecer com maior força as características que você possui e que eles herdaram. Pois você, como homem, é pequeno, covarde e mesquinho; e assim serão as religiões que você ajudou a construir. Sua intolerância e preconceito criará escravidão e injustiça; sua cobiça e desprezo fará guerra; sua mesquinhez e preguiça gerará fome; sua falta de amor e altruísmo, morte.

Agora imagine, por fim, que você, como Deus, poderá prever a tudo isso e que por sua culpa e por conta de seus erros, seus filhos-irmãos viverão num mundo cheio de dor, aflição, injustiça e sofrimento.

Mas mesmo assim, se eles acharem que estão sem você, vão pensar que estão no inferno.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Contrapunctus

- Me dá dois reais de pão.
- Dois?
- É. Você sabe o que foi que aconteceu ali?
- Bala. O cara vinha no carro, apareceu dois motoqueiros e balearam ele.
- Balearam?!
- Foi, agorinha. Cinco tiros.
- E o cara morreu?
- Morreu nada, tá lá no carro ainda. Tão esperando o SAMU chegar, porque não dá pra tirar ele de lá do carro.
- Nossa, e foi assalto isso?
- Nada, com certeza foi emboscada. Os motoqueiros vieram de capacete, já tavam esperando ele chegar, vê lá como o carro tá parado na rua.
- Quer dizer que o cara é bandido também...
- É sim, todo mundo sabe que ele andava com uns negócios esquisitos. Ele é filho de Dona Elisabete, da rua daqui do lado. Compra pão aqui todo dia, ela. Mas é assim mesmo, o cara se mete com coisa errada só pode dar nisso.
- Pois é...
- Tó aqui seu pão. Paga lá no caixa.
- Brigado.
- Boa noite.
- Boa. Você é quantos?

- Porra nenhuma!
- Ei, é sério, deixa o cara.
- Porra nenhuma. Deixa de frescura, caralho!
- Não quero, já falei que não tô no clima.
- Deixa o cara, não tá vendo que ele tá mal?
- Mal. Mal. Por quê? Por causa de mulher. Ah, babaca.
- Não quero, pô. Me deixa.
- Ah, vá. Eu bebo sozinho mesmo.
- Isso, fica quieto.
- Quieto nada! Quero fazer um brinde!
- Que brinde!
- Um brinde ao cara morto. Ao morto...
- Ele não tá morto.
- Ao morto e à mulher. Porque não tem coisa melhor do que mulher!
- Cara, tu já tá falando merda...
- À mulher do nosso amigo...
- Ei, ei, ei! Que é isso?
- Para velho, tu tás muito chato!
- Calma, calma... Então só à mulher. Eu bebo à mulher e ao morto!
- Puta merda...

- Olha ali, parece que tá acontecendo algo...
- Não mude de assunto!
- Não tô mudando! Olha ali quanta gente junta, deve ter acontecido alguma coisa!
- Eu vi que tem um bocado de gente ali, mas não é disso que estávamos falando. Você sabe disso. E você sempre encontra algum motivo pra deixar de conversar quando eu digo que tem alguma coisa errada.
- Não tô fugindo de nada. Só tô comentando que tem alguma coisa esquisita ali, porque com esse bando de gente junta fica difícil de passar com o carro, só isso. Não é desculpa pra fugir do assunto.
- Poxa, você não vê que isso não importa? Pode ter acontecido o que for, eles tão lá e a gente tá aqui! A gente tá falando de nossas vidas, da nossa vida, e você fica tentando comentar sobre algo pra ver se essa conversa muda!
- Não é isso...
- Poxa, você não vê que é justamente esse o problema? Que você foge de tudo, de tudo que é sério, parece que tem medo da responsabilidade! E eu querendo resolver esse problema e você fica falando dos outros...
- ...
- Tem mundo lá fora, mas o que importa agora é o mundo aqui dentro, deixa essa coisa pra lá e se concentra aqui, poxa! A gente tem que resolver isso ou então deixar tudo pra lá, tudo.
- Tá.

- Ei, cara, você tá bem? Ei, tá me escutando?
- Ah...
- Ele não tá ouvindo, porra, ele não tá ouvindo!
- Não, ele tá sim! Ei, você tá me ouvindo, né, tá me ouvindo?
- Tô sim...
- Não desiste, amigo, não desiste! A ambulância tá chegando!
- Vamo levar ele de carro!!
- Não dá, pode machucar ainda mais.
- Mas porra, olha quanto sangue, ele vai morrer!
- Não diz isso! Não diz isso!! E dá espaço, ele precisa respirar!
- Não quero...
- O que? O que foi, amigo?
- Não quero morrer...
- Você não vai morrer, você não vai!
- Me ajuda...
- Você não vai morrer, porra, a ambulância tá chegando! Agüenta aí, amigo, agüenta aí!
- Puta merda, que demora essa ambulância.
- Respira cara, respira.
- Hum...
- Porra, essa ambulância não chega logo...

- Tá muito longe?
- Não, falta pouco.
- Aqui o trânsito é sempre assim?
- Não, é que tá em horário de pico.
- Entendi. É que na minha cidade nunca fica assim. Ainda não me acostumei, sabe?
- Sei sim. Lugar tranqüilo, né?
- É.
- Muito acidente?
- Nada.
- Então você nunca pegou nada sério?
- Não. Terminei o curso agora pouco também.
- Sei... vê se fica esperto então.
- Como assim?
- Muita gente fica desesperada nos primeiros casos. O sangue e tal.
- Eu vi muito sangue nas aulas.
- É, mas não tinha ninguém embaixo dele implorando pra você salvar sua vida.
- ...
- Mas fica calmo. A gente faz o que pode.
- ...
- Embora nem sempre possa algo...

- Olha lá quanta gente!
- Vamo lá ver?
- Minha mãe disse que não posso...
- A minha também.
- Por que?
- Não sei, disse que não era coisa pra criança tá vendo.
- Mas você não quer ver o que é?
- Não sei. Fiquei com um pouco de medo.
- Então deixa.
- É, vamo brincar.
- De que?
- Polícia e ladrão!
- É, é!
- Tá bom. Quem vai ser polícia?
- Eu quero ser ladrão!
- Eu também!
- Ladrão!
- Tá, então eu sou polícia. Mas depois a gente troca, viu?

domingo, 14 de março de 2010

Coluna Social

Rua Pop, com Geyse Noinha

geyse noinha

Olá a todos queridos e queridas, começaremos hoje o Rua Pop, a mais nova coluna social que deixará todos os fascinados pelo mundo da alta sociedade marginalizada por dentro das últimas fofocas e notícias. Eu sou Geyse Noinha e acompanharei vocês nesta viagem es-pe-ta-cu-lar! Beijinhos, e não deixem de me acompanhar!

Criador Pego no Sono!!!

pedro rabujo

Pedro Rabujo, um dos mais badalados criadores de vira-latas da cidade, foi pego tirando um cochilo com seus bichinhos. Eles aproveitaram o cansaço da falta de comida e cairam no sono debaixo de uma sombrinha. Ai, isso não é fofíssimo, gente?

Especialista em Bebida dá Aula de Cachaçada!!!

maria das dores

Nossa queria Maria da Dores, especialista em encher a cara, foi convidade para dar uma palestra de como passar o dia todo bebendo numa reunião da Sociedade dos Alcoolatras. De quebra, foi convidada para dar um minicurso sobre degustação de cachaça barata! Tá podendo, hein, Maria?!?!

À Margem da Moda

zé do furo

Nessa sessão do Rua Pop nós mostramos membros da Sociedade vestidos com o que conseguiram recolher pelos becos. Para inaugurar, o queridíssimo Zé do Buraco vestindo um touca branca recém jogada fora, vê-se logo que não está muito encardida. A camisa aberta no peito dá um ar masculino conservador, ainda mais com esse bege sóbrio que combina com a calça verde de enfermaria. As meias pretas, essenciais para se aguentar o frio nos pés, quebram um pouco as cores anteriores, mas mantém o estilo de juntar tudo o que você conseguir recolher o mais facilmente. Chiquérrimo.

Espero que tenham gostado nas novidades. Aguardamos sua visita sempre, e se possível, se não for fazer falta, deixando alguns trocadinhos na canequinha. Beinjinhos!!!,

Geyse Noinha.

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PS: A ideia do negócio não é minha, mas do meu amigo Osvaldo. Nem sei se ele lembra dessa ideia, mas ainda tinha que citar os créditos, né? Abração, Odh!

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Mais um baile de carnaval

Seu João era um homem desses que levavam a vida como quem assina pontos: um movimento monótono no início do dia, indicando que o começava, e um outro no final, para deixar claro que o terminava. O resto do tempo era como um imenso arrastar-se entre esses dois momentos, preenchido com a burocracia dos empregos em repartições públicas. Não era à toa, já que a veia cômica da vida quase sempre insiste em manter-se pelos lados da ironia, que Seu João tirava o pão de cada dia trabalhando em um cartório, assinando linhas, carimbando papéis, abrindo firmas, catalogando arquivos, bebendo cafezinhos e fumando cigarros. E a tal ponto vivia Seu João entrosado com essa vida, que ele há muito tempo não conseguia demarcar um limite claro entre seus afazeres pessoais dos afazeres públicos, como se a burocracia do mundo dos arquivos tivesse se infiltrado no seu cotidiano, separando por ordem alfabética, cronológica, ou outra importância, cada um das ações de Seu João, numa sequência certa e sem nenhuma possibilidade de alteração, com pena de tomar uma ação judicial de algum órgão que não sabia muito bem qual era e quem representava.

Mas como toda repartição, a vida de Seu João também tirava suas férias e permitia que o sujeito mudasse sua rotina por alguns dias. Essas férias sempre aconteciam no carnaval, provavelmente para deixar com que outros seus joãos por aí fizessem o mesmo, aproveitando tudo num pacote que garantia um descanso muito maior a todos. Era só nesse período que Seu João podia inverter tudo o que era lei e brincar de ser alguma coisa que nunca poderia ser no dia-a-dia. Assim, a cada carnaval, Seu João deixava de ser ele mesmo e se transformava em pirata, bombeiro, zorro, palhaço, cavaleiro, centurião, padre, hippie, astronauta, soldado, marinheiro, zebra, carateca ou qualquer outra coisa que pensasse e conseguisse criar, e pulava os dias da maior festa do mundo junto com outras pessoas que eram ao mesmo tempo idênticas e completamente diferentes dele mesmo.

Essa história, que se repete e se repetiu e se repetirá inúmeras vezes em toda a parte onde existam carnavais, não mereceria ser contada, por já ser um clichê da marca mais vendida e comprada, se, por um acaso, Seu João não tivesse passado por um momento de pouca criatividade na hora de escolher sua próxima fantasia para o carnaval que já se aproximava. Pois se já tivesse certo do que iria se tornar em pouco tempo, não teria se deixado influenciar pelo que filme que viu de relance enquanto mudava de canais sem compromisso durante um dos seus momentos pré-progamados. O filme em questão contava a história de um cientista que criara um carro que voltava no tempo e era um clássico do pipocão cinematográfico, gênero adorado por muitos, Seu João aí no meio. Achou um tema interessante pra se fantasiar, e quando o carnaval começou, Seu João já era o cientista maluco que viajava pelo tempo, de jaleco e tudo.

Mas, se a pouca criatividade de Seu João foi o primeiro golpe da enxada que começava a nova trilha, é agora que tudo começa a realmente caminhar pelo caminho recém-inaugurado. Pois foi quando Seu João entrou no seu carro para dirigir até o ponto onde costumava brincar o carnaval todos os anos, que teve a idéia maluca, provavelmente porque era agora um cientista louco. Parou um tempo com a testa franzida, como se considerasse o que estava para fazer, e ficou alguns instantes pensando. Quando por fim tomou sua decisão, marcou numa tela imaginária uma data, encostou-se no banco, colocou o sinto de segurança e voltou no tempo para brincar um antigo carnaval.

Desde então Seu João passa a vida toda voltando no tempo para brincar antigos carnavais. Sempre que acaba um, ele marca na sua tela imaginária uma data e começa tudo novamente. Ele nunca vai para o futuro, pois tem medo de que chegue numa época em que o carnaval não exista mais. Por isso prefere a segurança do passado, onde pode ter certeza de que sempre poderá ser um palhaço, um detetive, um zorro ou um cientista maluco o tempo que puder.

Muitas pessoas depois de tomarem conhecimento dessa história extraordinária se perguntam por que diabos o Seu João, se teve a capacidade de voltar no tempo, simplesmente não modificava sua vida de forma a torná-la tão agradável quanto ele quisesse. O que essas pessoas não conseguem entender é que o que o Seu João fez foi menos compreender como funciona a realidade do que aceitar que o que se vive é a ilusão.

NOTA: Esse texto não ficou muito bom, mas eu meio que me senti na obrigação de escrever alguma coisa que tivesse a ver com o carnaval. Ele é meio que uma prova, já que eu o idealizei e escrevi muito rapidamente, de que escrever é muito mais do que simplesmente colocar palavras num papel. É também uma prova de que, mesmo detestando essa festa, é meio difícil fugir da epidemia carnavalesca. XD

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Fraternidade

A porta está destrancada quando eu chego. Ao abri-la, um vento de coisa azeda bate no meu rosto, e viro a cara pro lado, fugindo. Alguns minutos são precisos pra que eu me acostume com aquilo, e só depois eu realmente entro na sala, procurando um pouco de luz. Parece que não há interruptores. Abro a janela e deixo o sol invadir o cômodo, denunciando uma sujeira de séculos sem faxina. Séculos incontáveis. Marmitas vazias, talheres jogados, roupa largada, garrafas de bebida vazias, e difícil andar sem pisar em lixo. Não chamo por seu nome, faz silêncio e procuro saber se há algo a ser escutado. Tenho medo de que não haja: isso significaria que. Ando mais rápido, pisando no silêncio, até o quarto, e escuto sua respiração pesada, preguiçosa. Ele está deitado na cama, sem camisa e de jeans, os braços estendidos, envolto em sujeira. Sujo, descartável, morte. Passo alguns segundos parado, olhando para ele, pensando em toda aquela sujeira, em toda aquela merda entrando nele, em toda a morte que existe lá jogada, no chão e na cama. Deve correr rápida, ela. Ele, lento. Dormindo. Estou parado olhando pra ele, procurando alguma voz pra puxar de lá de dentro, e só depois de alguns segundos é que eu digo ei. É baixo, ele não olha. Ei, eu digo de novo, mas agora parece que achei um pouco mais de voz e ele se mexe cerrando os olhos com força antes de abri-los e olhar pra mim com o seu olhar cinza. Nem preto nem branco nem morte nem vida. Ele sorri e diz ei você garoto e sorri. Eu não sorrio, mas ele não pára. Ainda sorrindo ele diz eeeei garoto e tenta se levantar, mas não consegue. Se vira de lado e me olha, algo como profundamente, nem vida nem morte, e não consigo manter suspenso um silêncio tão pesado: ei, eu digo pro meu irmão.

Eu sabia que era meu irmão quando eu me viro porque eu sabia que esse ei era de alguém da família e sabia que só quem brilhava na família era meu irmão. E foi por isso que eu saí daquele sonho esquisito com padres e montanhas geladas porque eu sabia que aquele ei só podia ser do meu irmão, mesmo que eu tivesse ainda visto ele brilhando ali parado na entrada do quarto. Eu sabia que era meu irmão porque eu me lembrei que eu costumava sair dos sonhos que eu tinha quando era mais novo e a gente dormia no mesmo quarto e ele vinha com esse ei pra me acordar quando tinha um pesadelo. Era o mesmo ei a mesma voz só um pouco mais velha. Mas a confiança é a mesma. Então eu sabia que era ele quando eu me viro e respondo ei garoto e é ele mesmo brilhando ali parado na porta
Ei e eu lembro dele pequeno parado do lado da minha cama dizendo tive um pesadelo não consigo dormir. E eu dizia ei garoto deixa disso você não sabe que eu sou ninja tá com medo de que? Ninja? É rapaz você não viu os meus nuntchacos ali pendurados? Mas eles são de brinquedo Ti... Não são não são de verdade e eu estou pronto pra usá-los contra qualquer bandido ou monstro que apareça por aqui então você pode ir dormir sem medo Gui porque eu tô aqui sempre com minhas técnicas ninjas e meus nuntchacos ninja e meu chute ninja em qualquer palhaço que se atrever a mexer com meu irmãozinho e aí eu salvava ele que dormia sossegado finalmente
E ele nem desconfia que agora era ele quem me salvava com aquele ei me tirando do pesadelo horrível com os padres e seus chicotes de fogo e sua culpa. Sim, não eram mesmo montanhas geladas era a culpa imensa e o chicote de fogo que queima igual ao que eu pensei ser gelo. Pensei que fosse e meu irmãozinho Guilherme me salva daquilo e é por isso que eu estou sorrindo quando digo eeei garoto porque ele meu garoto nem sabe que agora era ele quem salvava o irmãozinho mais velho cheio de decadência e sujeira correndo por dentro que ironia
Agora é ele meu cavaleiro brilhante que parece que veio me salvar dos sonhos maus mas ele nem sabe que não pode me salvar meu cavaleiro brilhante de tudo porque ele não sabe porque eu mesmo não sei se há algo ainda a ser salvo se ainda há algo.

Com cuidado e paciência eu consigo levantá-lo da cama e vamos andando até a cozinha, ele apoiado em mim, o braço por cima dos meus ombros. Tudo está tão sujo que me sinto levando um ferido em combate, desviando dos campos minados, sem muita esperança no que nos aguarda no final do caminho. É uma comparação horrível e me sinto envergonhado de tê-la criado, mas não consigo pensar em outra coisa. O momento é horrível.
Sento ele numa das cadeiras da mesa da cozinha e jogo no chão, com um movimento brusco, o lixo que se acumulava por cima dela. Mesmo com a velocidade, ele não se assusta quando passo a braço com brutalidade. Os olhos vazios, ou tão cheios, não sei, continuam do mesmo jeito mirando fantasmas de vento. Onde foi parar toda aquela inteligência? Lembro-me de tantas coisas que se podia ver por detrás do seu olhar, tantos mundos sendo descobertos a toda hora, e agora parece que ele não sabe nem o que já foi descoberto, até pelos outros. Sento ele e olho ele e penso em tudo isso e que devo fazer um café, que talvez o acorde, ou que talvez me acorde, porque nem eu sei mais se estou vendo o que vejo ou o que vi.
Café, sim, adoraria um café, ele diz sorrindo quando sobe o cheiro da água quente se fundindo com o pó, e eu coloco a xícara na frente dele e me sento com a minha. Ele sorri, bebe, e parece mais lúcido. Não pode ter sido o café. Talvez tenha sido eu. Não pergunto, mas olho para ele e ele parece mais lúcido, pensando, ele de volta, não sei.
Mamãe está preocupada, digo. Humm, ele murmura, mas não me olha, fica ainda pensando, será que é ele mesmo de novo? Ela chora de vez em quando, digo. Parece que fica se lamentando quieta, mas às vezes ela fala, e quando fala às vezes chora. Ela se arrepende muito. Acha que você vai morrer. Humm, ele murmura, os olhos nos fantasmas. Papai também se arrepende, digo, e agora ele me olha. Me olha com o canto do olho, não sei se com dúvida ou com raiva, mas agora ele sorri, o que me leva a concluir que ele me olha na verdade é cheio de ironia. Se arrepende, é, ele pergunta, como uma faca. É, se arrepende, eu digo, e até queria que você voltasse.
Agora ele me olha diretamente, passando por dentro de mim, não me julgando, mas me sabendo. Queria que eu voltasse, ele pergunta. Porra Guilherme, depois de todo esse tempo e você ainda fica nessa de acreditar nele? Ele não quer que eu volte, ele mandou que eu saísse pra sempre, e o pra sempre dele é pra sempre. Ele não se arrepende de nada, ele apenas diz isso porque não agüenta ela chorando e incomodando a vidinha perfeita dele que não inclui tristeza muito menos filhos pródigos. Se arrepende. Aquele escroto não se arrepende de nada, ele diz que quer que eu volte porque sabe que não vou voltar, porque sabe que eu vou morrer e isso vai acabar logo, porque o pra sempre dele é pra sempre. Dizer é sempre o primeiro e mais óbvio e mais fácil remédio, ele sabe. Mamãe chora, ele nem liga pra ela, liga pras lágrimas. Não vou voltar pra lá, ele sabe, ele não quer.
Não é verdade, digo, irritado. Você não tá lá, Tiago, você não sabe de nada.
Não sei, ele diz, também irritado. É, eu não sei de nada e estou morto. Não sei de nada e por isso é que eu saí de lá, e por isso estou morto, e por isso é não volto pra lá.
Ficamos calados, gastando a irritação. Ele porque, apesar de tudo, diz que está errado. Eu porque, apesar de tudo, sei que está certo.

Eu saí porque não sabia de nada e porque não sei de nada estou morto e por isso não volto pra casa porque nunca soube de nada e era um estúpido
Era porque eu não sei de nada que comecei a usar e a me desviar do caminho de deus e do meu pai que afinal de contas são o mesmo deus senhor de tudo e de todos. Se eu soubesse eu não teria tentado cortar o caminho que meu deus me traçou e agora se eu soubesse eu estaria vivendo uma vida correta e não haveria o lixo e se eu soubesse eu ainda estaria vivendo debaixo do teto do templo de deus e aí cara seria tudo de bom e eu seria feliz e grato sacrificando cordeiros e se eu soubesse
E se eu soubesse eu ainda teria os beijinhos e o café da manhã na hora e o cobertor quentinho no inverno e fresquinho no verão e a grama crescendo verde debaixo da água da chuva que cairia só pra ela ficar mais bonita e alegrar ainda mais deus e se eu soubesse eu teria aquele carrão fodido quando passasse no vestibular e poderia me contentar com aqueles uísques escoceses e velhos e tudo que são muito bons e honestos e trabalhadores e a roupinha passadinha e o suéter no natal pro menino jesus e se eu soubesse se
E se eu soubesse eu não teria me aventurado e nem seguido aquelas pessoas que se eu soubesse nem seriam tão geniais e livres assim e então se eu soubesse eu não teria beijado o lixo e nem trepado com o lixo e nem me apaixonado pelo o lixo e nem casado com o lixo e tentaria seu eu soubesse me divorciar com o lixo antes que o lixo começasse a feder e a atrair os urubus e os ratos e as baratas e as moscas e se eu soubesse eu não teria deixado acumularem as pragas eu saberia
E se eu soubesse eu estaria vivo e voltaria pra casa pra parar com as lágrimas da minha mãe e a preocupação do meu pai porque eu saberia que eu deveria voltar pra casa porque no fim das contas todo deus quer ter sua própria parábola de filho pródigo e eu estaria vivo se eu soubesse
E se eu soubesse eu teria de volta o que eu deixei perder e haveria uma festa e não haveria mais lixo nem pragas e haveria uma família e uma ordem e eu teria meus direitos e deveres de fiel e no final eu teria garantida a salvação da minha alma eterna e eu não estaria morto se eu soubesse
Mas não eu não sei.

Nos sentamos no batente da frente da casa, a porta aberta, a luz do sol bem clara em nossas pernas esticadas. Fumamos, cada um com sua carteira, sua marca preferida de se acalmar com doença, cada um com seu silêncio. No entanto, parece que no meio dessa distância toda nós conseguimos ficar íntimos de novo, parece que somos irmãos de novo, nessa bobagem de fumar um cigarro no batente. Nos olhamos e sorrimos, porque sabemos. Ele tem aquele jeito lerdo de fumar, soltando a fumaça em baforadas curtas, como quem aproveita todo aquele gosto ruim de se matar por prazer. E olha para as pernas pálidas, o sol tornando-as meio brilhantes, e sorri pensando talvez que está se bronzeando finalmente. Esse é meu irmão, eu o reconheço agora, com seu jeito tolo de perceber que faz as coisas sem pensar. Sem pensar, mas com uma honestidade que nunca encontrei em nenhuma outra pessoa em canto algum.
Lembro daquela vez quando éramos crianças e eu jogava bola num terreno baldio junto com os outros meninos de perto de casa. Um hora chegou Gregório, menino grande, mimado e mandão, com tênis novos que mostrava pra todos querendo arrecadar invejas. Tênis novos, grandes pro menino grande, caros pro menino mimado, mas que não serviam pro menino jogar bola no terreno baldio que iria sujar os tênis. Ele os tirou com cuidado, desamarrando cada cadarço durante horas, num movimento tão articulado que parecia estar atuando num comercial de tv. Quando Gregório finalmente tirou os tênis, colocou-os de lado, exigiu que o deixassem jogar e disse que eu iria ficar de fora porque os times estavam completos, porque eu era o pior de todos e porque eu era gayzinho. Ninguém me defendeu, Gregório riu com satisfação de quem se descobre rei, e foi jogar bola com todos, me deixando ali sozinho e segurando as lágrimas. Meu primeiro pensamento foi voltar pra casa chorando, mas logo em seguida tive outro. Peguei os tênis caros do garoto grande e arremessei-os com toda a força dentro de um matagal espinhoso que ficava ao lado do terreno. Vingança comida, voltei pra casa e fui brincar com Tiago.
Algum tempo depois chegou Gregório puto da vida dizendo que eu tinha roubado os tênis novos dele. Tiago disse que ele não podia me acusar assim, e ele disse que tinha certeza disso. Meu irmão perguntou a verdade pra mim e eu nunca soube mentir, confessei tudo ali mesmo. Gregório ficou ainda maior quando disse que se eu não pegasse os tênis de volta ele contaria tudo ao meu pai, que, apesar de ter o dinheiro para pagar os tênis, me daria uma surra por ter mexido com a propriedade alheira sem permissão. Mas Tiago ficou calmo e disse que daria um jeito, sem que ninguém tivesse que sair machucado.
Então ele foi lá no matagal e entrou atrás dos tênis do menino grande e rei. Entrou até o fundo, pois eu tinha jogado os tênis com toda a força, até que sumiu. Quando voltou estava todo cortado pelos espinhos, o que me fez lembrar de Jesus crucificado com aquele sangue na cabeça por causa da coroa que eu via toda vez que ia na igreja. E enquanto Tiago dizia que eu não iria fazer aquilo novamente, Gregório observava o tênis pra ver se tinha algum arranhão, e encontrou alguns. Mas quando ia dizer alguma coisa, olhou pra Tiago mas não sei que expressão meu irmão tinha no rosto para que o menino-rei mudasse de idéia e fosse embora dizendo que estava tudo certo.
Era assim que eu via Tiago, como Jesus que sangrou nos espinhos para salvar seus irmãos. E agora que eu me lembro disso, fico me perguntando como eu pude esquecer. E esquecer me fez perceber o quanto eu já sabia da verdade disso tudo, e que eu sei que meu irmão está certo. Ele sabe, sempre soube, embora tenha errado consigo mesmo. Porque meu irmão sempre foi um salvador, um jesus sincero, e não um imbecil ingrato. Eu sei, ele sabe, mas eu deveria ter dito isso.
Ei, eu digo. Você estava certo.
Como, ele pergunta.
Você estava certo, cara. Você sabe sim, e eu sei também.
É, ele sorri, e eu sorrio também. E ficamos ali, sentados, sorrindo e fumando, como Jesus e seu irmão mais novo, nós.

Guilherme, Guilherme é meu irmão mais novo ele tem 4 anos a menos do que eu portanto eu sei 4 anos mais coisas do que ele. Guilherme fumava comigo e agora ele foi comprar comida pra gente porque não tem o que comer mais aqui em casa porque eu não como mais. Meu irmão mais novo vai me alimentar
Guilherme é meu irmão mais novo e eu o chamo de Gui porque é um diminutivo carinhoso pra um menino menor do que eu que eu amo e ele me chama de Ti porque ele aprendeu a falar só essa parte do meu nome quando era pequeno e então ele se acostumou com isso e todos nós nos acostumamos com isso porque é fácil se acostumar com um irmão chamando o outro com um diminutivo que é bonitinho e mostra que eles se amam
Gui é Guilherme é meu irmão mais novo é aquele que me disseram que eu tinha que proteger sempre porque eu sabia 4 anos a mais que ele e era 4 anos mais forte do que ele e por isso eu tinha aquela coisa de responsabilidade e tal mas eu sempre soube desde que o vi pequeno chorando no berço que ele era meu irmão mais novo que eu deveria proteger sempre porque eu o amava desde sempre. E não precisava que você pai, deus, me dissesse isso porque você nunca soube o que era cuidar de verdade de ninguém e eu sempre soube
Eu sempre soube e por isso eu fiz o melhor que pude pra cuidar dele. E é por isso que eu fui embora quando o lixo ficou muito grande porque eu não podia esconder todas aquelas pragas que me seguiam o tempo todo e eu não podia deixar que ele sentisse o cheiro fétido e doce eu não podia arriscar meu irmão nisso. Talvez ele não tenha entendido talvez nunca venha a entender mas sei que fiz o que era certo e o que sempre me foi confiado a fazer
Mas sei que nada é tão simples e que em parte fugi porque eu sempre soube que meu irmão brilhava dentre todos daquela religião que chamam de família era ele o único que era realmente um anjo. Fugi porque eu sentia vergonha de ser o que eu era perto de alguém como Guilherme porque seu brilho me cegava eu que vivia o tempo todo nos buracos do homem fugi porque eu já não tinha 4 anos a mais do que ele e assim eu não podia ser mais nada pra ele
Mas ele veio aqui pra me buscar e me sorrir e me comprar comida e me trazer de volta de um mundo que eu não tenho mais como sair. Ele me seguiu e me encontrou mas não sabe que não pode ser tudo como antes não sabe que não posso mais protegê-lo e que ele não pode cuidar de mim sem que eu possa cuidar dele também porque as coisas são assim desde que nascemos como irmãos e se não continuarem como são não podem ser mais nenhuma outra coisa
Então eu sorrio e sei que só posso fazer tudo igual. A mesma fuga de antes. Porque essa é a única forma que posso protegê-lo e que ele pode me proteger de verdade meu cavaleiro brilhante
Por isso volto pro meu quarto e preparo a maior quantidade de lixo que tenho e tomo tudo aquilo de um só gole deixando todo ele correr livre por dentro de mim me levando pra onde eu não poderei nunca mais cheirar mal e atrair pragas pra perto do meu irmão e de ninguém mais
E só assim eu serei sincero em protegê-lo de tudo
Uma última vez, pra sempre.

domingo, 3 de janeiro de 2010

7 dias

Todos os dias ela estava lá na praça, várias folhas de papel e uma caixa enorme de giz de cera, fazendo desenhos que eu só via de longe. Ao meu redor, a natureza brincava com meu humor, cinza, como num livro romântico ou um folhetim brega de banca de revista. Nessa época eu andava naquele estado de morbidez dos que não conseguem encontrar as cores na vida, e talvez por isso que ela tivesse me chamado atenção, com todos aqueles desenhos numa praça pobre e fria. Sozinha, sempre. Talvez os pais fossem vagabundos, alcoólatras, irresponsáveis ou tudo isso junto, o que era mais do que comum naquele bairro, quase com os dois pés na regra. A mim ela parecia abandonada, embora não parecesse ligar muito para isso, cantarolando baixinho musiquinhas contentes enquanto corria com o giz pela folha. Era uma espécie de felicidade solitária, eu pensava, o que me fazia refletir sobre minha própria situação e quão patético eu era, gastando dias num banco amargo de uma praça feia.

Acho que ela notava que eu a observava todos os dias, e nessa relação tão distante acabou surgindo alguma intimidade que só ela havia notado. Deve ter sido por isso que ela me chamou para tomar conta dos seus papéis e gizes enquanto iria atender um chamado da mãe. Perguntei por que ela não levava tudo junto consigo, e ela respondeu que não gostava de mexer num desenho que não tinha terminado ainda. Sorriu enquanto ia e eu sorri também, sem saber muito bem o porquê. Durante sua ausência pude olhar melhor seu desenho, um sol bem amarelo sorrindo esbaldado num campo azul. Faltava muito pouco para ser terminado, eu pensei, só mais umas corezinhas em alguns cantos, e tudo estaria pronto. Senti vontade de eu mesmo pegar no giz azul e terminar aquele céu, mas achei a idéia ridícula, terminar um desenho de uma criança. Você podia pintar também, surpreendeu-me ela quando chegou, e eu disse que não, tudo bem, o desenho era dela mesmo. Ela se sentou e começou a desenhar, enquanto eu fiquei ali observando o céu terminar de nascer. Você está doente, perguntou a menina, e eu perguntei por que. Ela disse que eu tinha cara de doente ou de triste, e eu sorri torto pensando que provavelmente ela estava duplamente certa. É difícil sentir-se bem e sorrir num dia tão cinza, você não acha, perguntei eu. Ela respondeu como quem não tivesse entendido muito bem a pergunta, ah, é por isso, e então tirou o desenho do papel e o sol sorriu lá em cima esbaldado num campo azul.

Surpreso eu perguntei como ela tinha feito aquilo, e ela disse que não era tão difícil quanto parecia, que quando a gente desenha é como se fosse Deus criando o mundo em 7 dias, era só preciso mudar um pouco o lugar onde você desenhava. Achei aquilo bonito e perguntei se ela fazia isso sempre. Ela falou que pouco, gostava mais do papel dela porque era só dela, e então as pessoas não podiam falar mal de seus desenhos. Achei seu desenho lindo, falei. Ela sorriu e eu também, e dessa vez eu sabia o porquê. Nos tornamos amigos.

Eu continuava indo todos os dias à praça vê-la desenhar, mas agora sentava ao seu lado. Nada de excepcional havia em seus desenhos, eram iguais aos de qualquer criança na idade dela. Mas talvez por ser a única criança que eu tinha realmente uma amizade verdadeira, eu os achava lindos, e sempre que eu dizia que algum dos desenhos havia me agradado particularmente, ela tirava o desenho do papel e colocava no mundo, tornando aquela praça cinza e feia um pouco mais agradável, com pássaros voadores, tartarugas preguiçosas, unicórnios galopantes, flores perfumadas, sereias cantarolantes e árvores lotadas de frutas.

Mas um dia eu estava indo para a praça e ouvi barulhos altos, como se soltassem fogos de artifício. Logo depois vieram os gritos e as pessoas correndo em minha direção. Por alguns segundos senti meu coração parar e o ar desaparecer ao meu redor, como se tivesse morrido um pouco, mas logo depois avancei desesperadamente em direção à praça. Ninguém. Só um balanço se movendo, pegadas da areia, um vento frio soprando fraco e manchas de sangue em no banco. E, reinando absoluto, o silêncio.

Voltei na praça no outro dia e estava isolada pela polícia. Nenhum dos homens da lei quis me dizer o que havia acontecido, nem quem tinha se ferido, muito menos se haviam mortos. Vai atrapalhar as investigações, explicaram-me eles. Talvez alguém tenha realmente atrapalhado, pois dias depois eles liberaram a praça sem chegar a nenhuma conclusão oficial para o caso, que, apesar disso, continuaria sendo investigado dentro de gabinetes e folhas de papel, estas sem nenhum desenho colorido.

Agora que a praça estava liberada, provavelmente as pessoas voltariam a freqüentá-la, já que não tinham mesmo muitas opções de lazer naquele bairro. Violência está em toda parte, pensei, nem em casa se está mais protegido. Resolvi comprar novos gizes e folhas para minha amiga, pois era bem capaz que ela tivesse perdido os seus durante a confusão. Mas, para minha surpresa e decepção, ela não estava lá. Perguntei para as outras pessoas se alguém sabia do paradeiro da menina, mas ninguém soube dizer. Não a conheciam e nem aos pais dela. Só pude, então, sentar-me no mesmo lugar onde ela se sentava, segurar o presente nas mãos, e esperar que ela voltasse algum dia.

E esperei. E passei muito tempo até me convencer que ela não viria mais. Nesse dia o céu estava cinza, e a praça feia e vazia. Abri o bloco de papel que havia comprado para dar de presente, peguei alguns gizes de cera e comecei a desenhar. Quando terminei, tirei a praça colorida do papel e coloquei no lugar da antiga.