domingo, 3 de janeiro de 2010

7 dias

Todos os dias ela estava lá na praça, várias folhas de papel e uma caixa enorme de giz de cera, fazendo desenhos que eu só via de longe. Ao meu redor, a natureza brincava com meu humor, cinza, como num livro romântico ou um folhetim brega de banca de revista. Nessa época eu andava naquele estado de morbidez dos que não conseguem encontrar as cores na vida, e talvez por isso que ela tivesse me chamado atenção, com todos aqueles desenhos numa praça pobre e fria. Sozinha, sempre. Talvez os pais fossem vagabundos, alcoólatras, irresponsáveis ou tudo isso junto, o que era mais do que comum naquele bairro, quase com os dois pés na regra. A mim ela parecia abandonada, embora não parecesse ligar muito para isso, cantarolando baixinho musiquinhas contentes enquanto corria com o giz pela folha. Era uma espécie de felicidade solitária, eu pensava, o que me fazia refletir sobre minha própria situação e quão patético eu era, gastando dias num banco amargo de uma praça feia.

Acho que ela notava que eu a observava todos os dias, e nessa relação tão distante acabou surgindo alguma intimidade que só ela havia notado. Deve ter sido por isso que ela me chamou para tomar conta dos seus papéis e gizes enquanto iria atender um chamado da mãe. Perguntei por que ela não levava tudo junto consigo, e ela respondeu que não gostava de mexer num desenho que não tinha terminado ainda. Sorriu enquanto ia e eu sorri também, sem saber muito bem o porquê. Durante sua ausência pude olhar melhor seu desenho, um sol bem amarelo sorrindo esbaldado num campo azul. Faltava muito pouco para ser terminado, eu pensei, só mais umas corezinhas em alguns cantos, e tudo estaria pronto. Senti vontade de eu mesmo pegar no giz azul e terminar aquele céu, mas achei a idéia ridícula, terminar um desenho de uma criança. Você podia pintar também, surpreendeu-me ela quando chegou, e eu disse que não, tudo bem, o desenho era dela mesmo. Ela se sentou e começou a desenhar, enquanto eu fiquei ali observando o céu terminar de nascer. Você está doente, perguntou a menina, e eu perguntei por que. Ela disse que eu tinha cara de doente ou de triste, e eu sorri torto pensando que provavelmente ela estava duplamente certa. É difícil sentir-se bem e sorrir num dia tão cinza, você não acha, perguntei eu. Ela respondeu como quem não tivesse entendido muito bem a pergunta, ah, é por isso, e então tirou o desenho do papel e o sol sorriu lá em cima esbaldado num campo azul.

Surpreso eu perguntei como ela tinha feito aquilo, e ela disse que não era tão difícil quanto parecia, que quando a gente desenha é como se fosse Deus criando o mundo em 7 dias, era só preciso mudar um pouco o lugar onde você desenhava. Achei aquilo bonito e perguntei se ela fazia isso sempre. Ela falou que pouco, gostava mais do papel dela porque era só dela, e então as pessoas não podiam falar mal de seus desenhos. Achei seu desenho lindo, falei. Ela sorriu e eu também, e dessa vez eu sabia o porquê. Nos tornamos amigos.

Eu continuava indo todos os dias à praça vê-la desenhar, mas agora sentava ao seu lado. Nada de excepcional havia em seus desenhos, eram iguais aos de qualquer criança na idade dela. Mas talvez por ser a única criança que eu tinha realmente uma amizade verdadeira, eu os achava lindos, e sempre que eu dizia que algum dos desenhos havia me agradado particularmente, ela tirava o desenho do papel e colocava no mundo, tornando aquela praça cinza e feia um pouco mais agradável, com pássaros voadores, tartarugas preguiçosas, unicórnios galopantes, flores perfumadas, sereias cantarolantes e árvores lotadas de frutas.

Mas um dia eu estava indo para a praça e ouvi barulhos altos, como se soltassem fogos de artifício. Logo depois vieram os gritos e as pessoas correndo em minha direção. Por alguns segundos senti meu coração parar e o ar desaparecer ao meu redor, como se tivesse morrido um pouco, mas logo depois avancei desesperadamente em direção à praça. Ninguém. Só um balanço se movendo, pegadas da areia, um vento frio soprando fraco e manchas de sangue em no banco. E, reinando absoluto, o silêncio.

Voltei na praça no outro dia e estava isolada pela polícia. Nenhum dos homens da lei quis me dizer o que havia acontecido, nem quem tinha se ferido, muito menos se haviam mortos. Vai atrapalhar as investigações, explicaram-me eles. Talvez alguém tenha realmente atrapalhado, pois dias depois eles liberaram a praça sem chegar a nenhuma conclusão oficial para o caso, que, apesar disso, continuaria sendo investigado dentro de gabinetes e folhas de papel, estas sem nenhum desenho colorido.

Agora que a praça estava liberada, provavelmente as pessoas voltariam a freqüentá-la, já que não tinham mesmo muitas opções de lazer naquele bairro. Violência está em toda parte, pensei, nem em casa se está mais protegido. Resolvi comprar novos gizes e folhas para minha amiga, pois era bem capaz que ela tivesse perdido os seus durante a confusão. Mas, para minha surpresa e decepção, ela não estava lá. Perguntei para as outras pessoas se alguém sabia do paradeiro da menina, mas ninguém soube dizer. Não a conheciam e nem aos pais dela. Só pude, então, sentar-me no mesmo lugar onde ela se sentava, segurar o presente nas mãos, e esperar que ela voltasse algum dia.

E esperei. E passei muito tempo até me convencer que ela não viria mais. Nesse dia o céu estava cinza, e a praça feia e vazia. Abri o bloco de papel que havia comprado para dar de presente, peguei alguns gizes de cera e comecei a desenhar. Quando terminei, tirei a praça colorida do papel e coloquei no lugar da antiga.