quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Estátua de sal

Ele era um mendigo sujo, desses que encontramos aos montes por aí. Carregava sempre um saco nas costas que usava como mochila para levar suas poucas tralhas, não se sabia ao certo o quê. A calça coronha deixava à mostra suas pernas finas e cheias de feridas que sangravam a todo momento, e, como não tinha muita força para caminhar, usava um cabo de vassoura como bengala. Isso lhe dava um certo diferencial entre os outros mendigos, um ar de originalidade. Isso para aqueles que sempre querem ver uma espécie de lado positivo nas coisas, pois todos sabiam que era pura e simples necessidade mesmo; era possível perceber, se você prestasse atenção, a expressão de vergonha em seus olhos, andando com aquelas feridas abertas e se apoiando no ridículo cabo de vassoura verde.

E não era só vergonha que se via nos olhos do mendigo, mas sobretudo um ódio amargo por todos os outros seres humanos que passavam por perto dele. Conforme gastara o tempo naquela vida de mendigância, fora desenvolvendo uma misantropia de quem se cansa de ser o tempo todo cuspido e escarrado. Por isso só aceitava, e ainda assim lançando um olhar maligno para quem dava, o mínimo de esmola necessário para manter suas necessidades básicas, a bebida aí inclusa. Beber, aliás, era a única coisa que detestava menos em todo o resto da sua existência, justamente porque o fazia ver com melhores olhos aquela porcaria toda que o cercava e que parecia começar em si mesmo para só então abarcar o resto do mundo. Mas depois que acordava no dia seguinte, e da bebida só lhe restava a podridão na boca e as brasas no estômago, maldizia seu vício patético, embora sem muita raiva, pois sabia que logo começaria a busca para alimentá-lo.

Assim deixava os dias se passarem, embriagado de álcool é ódio. Até que um dia cansou-se dessa merda toda e resolveu se sentar e esperar pela morte.

Procurou um banco de uma praça movimentada, para que não se esquecesse do motivo de sua decisão e resolvesse mudar de idéia. Comprou uma garrafa de cachaça barata, acomodou-se no banco e, inclinando o corpo para frente, apoiou o queixo em cima da bengala, sua posição de espera característica. De vez em quando dava um gole da cachaça, mas não muito, porque não queria beber demais e acabar dormindo e assim correr o risco de deixar a morte passar.

Não se sabe muito bem quanto tempo ficou assim, nem quanto da bebida chegou a tomar, e nem muito menos que espécie de Gomorra em chamas ele viu, mas aconteceu de um dia alguém perceber que ele se tornara uma estátua de sal. Mas não esse sal comum, que a gente tem na cozinha e tempera a comida; era um sal duro, escuro e amargo, que deixava um cheiro de pântano nos arredores do banco onde a estátua repousava.

Não é todo mundo que acredita que aquilo é uma estátua de sal, e tem uns céticos mais corajosos que insistem em provar a estátua, passando a língua em alguma parte dela. Todos eles, depois de tal ato de coragem, confessaram que passaram dias com a língua cortada e o com um gosto amargo castigando a boca.

10 comentários:

poli disse...

perfeito

Paulo Bono disse...

do caralho, Srcutinizer.
escrevendo bem assim e sendo meu fã, puta que pariu, tô bem na foto.

abraço

Alysson disse...

Bem intrigante Lusca! Gostei muito do post, bela escolha de palavras na descrição do mendigo!!!

Provavelmente o ódio amargo do homem provoca o gosto e os cortes na língua de quem tentou provar a estátua... quem vai saber?! ^^

Abração!!!

Bianca Mól disse...

Caramba...Você escreve bem, hein? =) Tôboba.

Bianca Mól disse...

ps: Aprovadíssimos os cds de rock do outro post!

Beijo

Bruna Barros disse...

você escreve muuuuuuuuuito bem, parabéns, de verdade!

Evandro Marques disse...

Muito de nós carregamos esse gosto amargo na boca. Só fingimos não senti-lo, enquanto arrastamos nossa lingua por ai.

Anônimo disse...

Gostei muito do que li. Parabéns!
Nunca mais tinha lido algo que chamasse tanto atenção.
Beijos. Obrigada por visitar meu humilde blog. *-*

Anônimo disse...

gosto amargo do ódio que ele talvez tenha deixado de herança.

Luara Quaresma disse...

Adorei suas palavras.