sexta-feira, 16 de abril de 2010

Contrapunctus

- Me dá dois reais de pão.
- Dois?
- É. Você sabe o que foi que aconteceu ali?
- Bala. O cara vinha no carro, apareceu dois motoqueiros e balearam ele.
- Balearam?!
- Foi, agorinha. Cinco tiros.
- E o cara morreu?
- Morreu nada, tá lá no carro ainda. Tão esperando o SAMU chegar, porque não dá pra tirar ele de lá do carro.
- Nossa, e foi assalto isso?
- Nada, com certeza foi emboscada. Os motoqueiros vieram de capacete, já tavam esperando ele chegar, vê lá como o carro tá parado na rua.
- Quer dizer que o cara é bandido também...
- É sim, todo mundo sabe que ele andava com uns negócios esquisitos. Ele é filho de Dona Elisabete, da rua daqui do lado. Compra pão aqui todo dia, ela. Mas é assim mesmo, o cara se mete com coisa errada só pode dar nisso.
- Pois é...
- Tó aqui seu pão. Paga lá no caixa.
- Brigado.
- Boa noite.
- Boa. Você é quantos?

- Porra nenhuma!
- Ei, é sério, deixa o cara.
- Porra nenhuma. Deixa de frescura, caralho!
- Não quero, já falei que não tô no clima.
- Deixa o cara, não tá vendo que ele tá mal?
- Mal. Mal. Por quê? Por causa de mulher. Ah, babaca.
- Não quero, pô. Me deixa.
- Ah, vá. Eu bebo sozinho mesmo.
- Isso, fica quieto.
- Quieto nada! Quero fazer um brinde!
- Que brinde!
- Um brinde ao cara morto. Ao morto...
- Ele não tá morto.
- Ao morto e à mulher. Porque não tem coisa melhor do que mulher!
- Cara, tu já tá falando merda...
- À mulher do nosso amigo...
- Ei, ei, ei! Que é isso?
- Para velho, tu tás muito chato!
- Calma, calma... Então só à mulher. Eu bebo à mulher e ao morto!
- Puta merda...

- Olha ali, parece que tá acontecendo algo...
- Não mude de assunto!
- Não tô mudando! Olha ali quanta gente junta, deve ter acontecido alguma coisa!
- Eu vi que tem um bocado de gente ali, mas não é disso que estávamos falando. Você sabe disso. E você sempre encontra algum motivo pra deixar de conversar quando eu digo que tem alguma coisa errada.
- Não tô fugindo de nada. Só tô comentando que tem alguma coisa esquisita ali, porque com esse bando de gente junta fica difícil de passar com o carro, só isso. Não é desculpa pra fugir do assunto.
- Poxa, você não vê que isso não importa? Pode ter acontecido o que for, eles tão lá e a gente tá aqui! A gente tá falando de nossas vidas, da nossa vida, e você fica tentando comentar sobre algo pra ver se essa conversa muda!
- Não é isso...
- Poxa, você não vê que é justamente esse o problema? Que você foge de tudo, de tudo que é sério, parece que tem medo da responsabilidade! E eu querendo resolver esse problema e você fica falando dos outros...
- ...
- Tem mundo lá fora, mas o que importa agora é o mundo aqui dentro, deixa essa coisa pra lá e se concentra aqui, poxa! A gente tem que resolver isso ou então deixar tudo pra lá, tudo.
- Tá.

- Ei, cara, você tá bem? Ei, tá me escutando?
- Ah...
- Ele não tá ouvindo, porra, ele não tá ouvindo!
- Não, ele tá sim! Ei, você tá me ouvindo, né, tá me ouvindo?
- Tô sim...
- Não desiste, amigo, não desiste! A ambulância tá chegando!
- Vamo levar ele de carro!!
- Não dá, pode machucar ainda mais.
- Mas porra, olha quanto sangue, ele vai morrer!
- Não diz isso! Não diz isso!! E dá espaço, ele precisa respirar!
- Não quero...
- O que? O que foi, amigo?
- Não quero morrer...
- Você não vai morrer, você não vai!
- Me ajuda...
- Você não vai morrer, porra, a ambulância tá chegando! Agüenta aí, amigo, agüenta aí!
- Puta merda, que demora essa ambulância.
- Respira cara, respira.
- Hum...
- Porra, essa ambulância não chega logo...

- Tá muito longe?
- Não, falta pouco.
- Aqui o trânsito é sempre assim?
- Não, é que tá em horário de pico.
- Entendi. É que na minha cidade nunca fica assim. Ainda não me acostumei, sabe?
- Sei sim. Lugar tranqüilo, né?
- É.
- Muito acidente?
- Nada.
- Então você nunca pegou nada sério?
- Não. Terminei o curso agora pouco também.
- Sei... vê se fica esperto então.
- Como assim?
- Muita gente fica desesperada nos primeiros casos. O sangue e tal.
- Eu vi muito sangue nas aulas.
- É, mas não tinha ninguém embaixo dele implorando pra você salvar sua vida.
- ...
- Mas fica calmo. A gente faz o que pode.
- ...
- Embora nem sempre possa algo...

- Olha lá quanta gente!
- Vamo lá ver?
- Minha mãe disse que não posso...
- A minha também.
- Por que?
- Não sei, disse que não era coisa pra criança tá vendo.
- Mas você não quer ver o que é?
- Não sei. Fiquei com um pouco de medo.
- Então deixa.
- É, vamo brincar.
- De que?
- Polícia e ladrão!
- É, é!
- Tá bom. Quem vai ser polícia?
- Eu quero ser ladrão!
- Eu também!
- Ladrão!
- Tá, então eu sou polícia. Mas depois a gente troca, viu?

4 comentários:

Lívia Fernanda disse...

Aquele tipo de texto que passa um filme na cabeça enquanto se lê.
Dá até pra imaginar os personagens, e os gestos, mesmo não estando descritos.

Clara disse...

rá!

Belle disse...

É.. a imaginação foi longe...
Gostei...
Bjos

Igor F. Martins disse...

Caraca, Lucas. Que baita texto!
Nunca mais vou comprar um pão sem lembrar desse conto...